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APRESENTAÇÃO NA AULA DE SAPIÊNCIA DE DUARTE CABRAL DE MELLO
PRIMEIRA AULA
F.A.U.L, 29 de Novembro de 2011
As razões pelas quais nos encontramos os dois aqui para fazer a introdução à aula de sapiência do Professor Duarte Cabral de Mello, são no fundo as mesmas razões que poderiam ter trazido a esta mesa muitos dos que se encontram hoje nesta sala: fomos seus alunos nesta escola, fomos colaboradores no seu atelier de arquitectura, fomos, mais tarde e durante muitos anos, colegas de faculdade, e somos… apesar de tudo isso, amigos.
É impossível apresentar, nos breves minutos que temos, o percurso profissional e académico percorrido até aqui por Duarte Cabral de Mello. Vamos portanto apontar apenas alguns dos aspectos que nos podem ajudar a relembrar esse extenso caminho particularmente rico:
Em 1971, no mesmo ano em que obtém o diploma de arquitecto nesta escola - na altura ESBAL – e em que é coordenador de estaleiro da Igreja do Sagrado Coração de Jesus, parte para Nova Iorque, onde permanece até 1973, como investigador no Institute for Architecture and Urban Studies (IAUS).
Durante esses anos, Duarte Cabral de Mello envolve-se profundamente na investigação teórica, em conjunto com arquitectos e pensadores como Joseph Rykwert, Kenneth Frampton, John Hejduk, Colin Rowe, Diana Agreste ou Peter Eisenman e participa na fundação da célebre revista do Instituto, sendo ele próprio a cunhar-lhe o nome: Oppositions.
Regressado a Portugal, retoma a actividade profissional com Nuno Teotónio Pereira e Nuno Portas, tornando-se arquitecto associado do atelier.
Em 1976 é director técnico do grupo de apoio às cooperativas de habitação, e em 1978 funda, com Maria Manuel Godinho de Almeida, a UTOPOS, atelier onde vem a desenvolver inúmeros projectos, desde projectos para habitação colectiva a custos controlados para Alverca, Alto do Zambujal ou Vila Nova da Caparica, vários deles premiados, até ao desenho da cidade como, por exemplo, o Plano de Urbanização do Centro Histórico de Braga ou o Plano Norte para a zona da EXPO.
Quase em simultâneo com a fundação da UTOPOS, inicia na antiga ESBAL a prática docente como professor de projecto, que manteve ininterruptamente ao longo de 32 anos, até à sua recente jubilação.
Doutorou-se em 2008, com uma tese designada A Arquitectura Dita: Anamorfose e Projecto, tema que continua a aprofundar em trabalhos e conferências nacionais e internacionais.
O reconhecimento do seu percurso, nada convencional nos termos actuais a que a Universidade obriga, e a importância que lhe é atribuída como intelectual, tem-se expresso em convites para colaborar com instituições como a Fundação Calouste Gulbenkian, a Agência Municipal de Energia e Ambiente ou o Prémio Secil de Arquitectura, de cujo júri foi Presidente ainda este ano.
Foi distinguido como membro Honorário da Ordem dos Arquitectos.
Depois desta breve passagem pelo percurso de Duarte Cabral de Mello, gostávamos de contar uma pequena história.
É a história de um jovem que se apresentou a um velho mestre para ser seu discípulo e que, ao fim de um ano, lhe disse: “Mestre, estou já há um ano contigo e não me disseste uma palavra... Não me vais ensinar nada?” Ao que o mestre lhe respondeu: “Tens estado sempre comigo, ao meu lado. Não te basta?”
Duarte Cabral de Mello representa a antítese do Mestre desta história.
E é por isso que, perante alguém que de forma tão incisiva e sistemática, tanto nas suas palavras como nas suas acções, sempre conhecemos a trocar as voltas às relações e aos papéis tradicionais do mestre e do discípulo, é paradoxalmente tão fácil e imediato, para nós, enunciar concretamente muitas das coisas que, como alunos, professores, arquitectos, e, antes disso tudo, como pessoas, fomos e vamos aprendendo com ele:
a) Aprendemos que o diálogo é uma ferramenta de trabalho.
Dialogar, para o Duarte, foi sempre muito mais ouvir do que gostar de ouvir-se.
O provérbio “a falar é que a gente se entende”, com o Duarte, passou para nós a ser também “a falar é que a gente entende”. Em todas as conversas nas suas aulas, em todas as conversas no seu atelier, nas salas dos professores, ou à volta de qualquer mesa, habituámo-nos, com o Duarte, a tentar sempre comunicar melhor, com maior clareza e menos mistérios, para podermos pensar melhor e com mais rigor, ou seja, para “levantar constantemente a fasquia”, como ele gosta de dizer.
b) Aprendemos que fazer do conhecimento uma forma de poder sobre os outros é uma forma de estupidez. O Duarte sempre partilhou com os outros tudo o que sabe – e é muitíssimo – e de nós sempre esperou o mesmo, por pouco que fosse.
Sentados com ele ao estirador, na escola ou no escritório, partilhou sempre connosco tudo o que sabe sobre a arquitectura ou a vida.
O Duarte, ao quebrar ele próprio todas as inacessibilidades, pressupostamente atribuídas à diferença de idade ou ao estatuto, teimou em construir desde sempre os laços de conhecimento que, agora com redobrada energia, continua a construir, sabendo que aí reside a hipótese de salvação do que ele designa por “bicho-homem”.
c) Aprendemos que o afecto não implica condescendência.
O rigor com que o Duarte se coloca, sempre de uma forma directa e implacável, perante o trabalho ou as palavras dos outros – sejam alunos, desconhecidos, colegas, companheiros ou amigos, e muitas vezes muitas destas coisas ao mesmo tempo – corresponde exactamente à exigência que sempre colocou no seu próprio trabalho e na sua vida. As “palmadinhas nas costas” ou a auto-complacência não fazem parte dos seus hábitos. É uma questão de respeito por si próprio e pelo outro. É uma questão de ética.
d) Aprendemos que o melhor atelier é também uma escola e a melhor escola é também um atelier.
Hoje, neste momento em que, sistematicamente e pela primeira vez na sua história, a academia expele os professores que mantêm actividade profissional como arquitectos, e neste momento em que muitos dos ateliers profissionais deixaram de ser lugares de formação e aprendizagem, é mais importante do que nunca reflectir sobre o contributo que Duarte Cabral de Mello, Professor e Arquitecto, deu para a aproximação entre a escola e a profissão, agora que se levantam entre elas insólitas fronteiras, mais intransponíveis do que nunca.
e) Aprendemos que projectar, tal como ensinar a projectar, é interrogar permanentemente as certezas adquiridas, o conforto das unanimidades, os caminhos fáceis ou circunstanciais, para melhor operar sobre e com a realidade.
f) Aprendemos – confirmámos – que para nós, arquitectos, os estímulos indispensáveis para levar a cabo o nosso trabalho, a formulação das interrogações ou das respostas possíveis, se podem encontrar tanto na pura erudição como num poema grafitado numa parede do Metropolitano.
(O que não é dizer pouco, para um homem que terá seguramente uma das mais completas bibliotecas privadas de arquitectura em Portugal…).
g) Com Duarte Cabral de Mello, aprendemos a confundir o trabalho e a festa.
O trabalho em arquitectura, no atelier ou na escola, é sempre um trabalho colectivo. E difícil. Mas, tanto no seu atelier como nas suas aulas, conhecemos a alegria quotidiana de uma intriga absolutamente partilhada.
Não se rendendo nunca às agruras da profissão, nem à rotina que pode espreitar na aula, nem mesmo às infelicidades inevitáveis da vida, o Duarte, como maestro de um colectivo de trabalho, procura em todos os momentos essa possibilidade de celebração do próprio trabalho feito com o outro e para o outro.
Como ele diz sempre: “Haja alegria no trabalho!”
A nossa escola, na qual nos encontramos hoje e onde Duarte Cabral de Mello construiu uma parte do seu percurso, sempre se caracterizou por uma certa heterogeneidade, reflectida em diferentes formas e modelos de ensino. E nessa heterogeneidade, esta escola, com a sua dimensão e a sua longa história, tem sido por vezes menor e muitas outras maior. Mas é exactamente através dessa heterogeneidade que esta escola vai dando o seu contributo para formar arquitectos de grande qualidade. Como sinal disso, basta-nos olhar em redor, hoje que tantos companheiros e ex-alunos decidiram regressar por um dia à sua escola, para comprovar este facto.
Na verdade, uma escola desta natureza é muito daquilo que aqueles que a constituem vão sendo.
Nesse sentido, com Duarte Cabral de Mello, e graças à sua intervenção, esta escola foi Maior.
Neste momento simbólico em que se fecha o ciclo formal da sua colaboração com a escola, a pressão - boa - que nos deixa é a de não desistirmos e continuarmos a trabalhar para nos mantermos nesse seu plano Maior.
“Nós somos o que fazemos. O que não se faz não existe. Portanto, só existimos nos dias em que fazemos. Nos dias em não fazemos apenas duramos”.
Estas palavras de Padre António Vieira que Duarte Cabral de Mello traz sempre consigo, lembram-nos que com ele aprendemos acima de tudo o seu prazer de existir, com o qual, em cada coisa que fazemos, tentamos colocar, como ele, a disponibilidade, o empenho, a alegria e o entusiasmo, como se da primeira coisa se tratasse, e como se cada aula que damos fosse sempre … a Primeira Aula.
Jorge Spencer e José Neves