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A ARQUITECTURA DE JANUÁRIO GODINHO COMO TRABALHO DE

CONTINUIDADE: 3 EXEMPLOS

Auditório da FNAC - Chiado, 19 de Novembro de 2012

Lançamento Duas Obras de Januário Godinho em Ovar, de André Tavares

A perda de memória é uma doença avassaladora que não nos ataca apenas individualmente. A perda de memória é uma doença que também nos ataca colectivamente, fazendo com que o mundo fique mais triste e mais perigoso.

Livros como este Duas Obras de Januário Godinho em Ovar, de André Tavares, são remédios implacáveis contra esta doença colectiva, deixando-nos perceber melhor o chão que pisamos e os caminhos que queremos ou não queremos percorrer.

Que eu saiba, este é o primeiro livro publicado sobre a obra do arquitecto Januário Godinho. E é espantoso que assim seja por se tratar de um dos arquitectos que melhor arquitectura fez em Portugal, no século XX, e por se tratar de um dos colegas com que mais podemos aprender hoje e aqui.

É que nisto de colegas de ofício pouco importa se estão vivos ou mortos fisicamente, porque para quem faz um trabalho como o da arquitectura, como alguém disse, “os antepassados e os amigos são, não uma recordação, mas sim uma presença. Encontram-se à nossa frente, mais vivos do que nunca.”

Além do mais, o trabalho de Januário Godinho é um dos que mais coragem me tem dado para ir fazendo o meu próprio trabalho e para continuar a querer acreditar (apesar disso ser cada vez mais difícil) que nós arquitectos temos uma tarefa a cumprir na comunidade de que fazemos parte.

Vou então mostrar algumas imagens de três projectos dele, para tentar falar de uma das coisas que mais me interessam na sua obra: o facto de ela ser, em todos os momentos, um trabalho de continuidade, ou seja, o facto de, nesta obra, estar sempre presente a evidência de que os limites do objecto arquitectónico nunca são, na verdade, os limites físicos do objecto que se projecta. Em todas as situações, a arquitectura de Januário Godinho recusa a produção de objectos ensimesmados, isolados do mundo ou que se acrescentem ao mundo meramente como parcela de um somatório.

Foi ele quem escreveu, em 1960, a pretexto da obra de Frank Lloyd Wright que:

 

“Em arquitectura [...] não é possível considerar separadamente um edifício como entidade independente do sítio, da terra, do clima, do sol, do ambiente, da vida do homem, da natureza, dos materiais, etc.. Todo o conjunto não deverá   formar senão uma única entidade, com a integração de todos os elementos.”

 

E foi também ele que escreveu, no fim dos anos 40, a pretexto do Plano de Urbanização de Amarante:

 

“Esmagar ou repisar ambientes criados, não é propriamente a missão das obras públicas, ainda que, porventura, pareçam mais económicas. Respeite-se o que   está feito e o que tem real valor, como marco, assinalando o espírito e a   expressão de uma época, e abram-se novos caminhos que possam merecer às gerações futuras o mesmo carinho e respeito que nos leva hoje a contemplar as obras do passado.”

Estas duas citações (que aliás se encontram neste livro do André Tavares que, ao escolher duas obras concretas para reflectir a importância delas na formação do todo que é uma cidade, é exactamente desta noção da arquitectura como trabalho de continuidade que trata) são tomadas de posição sobre uma ideia de continuidade que, um pouco mais tarde, Fernando Távora, haveria de esclarecer, de uma maneira igualmente clara e directa, ao apresentar como condições chave para esse trabalho as noções de colaboração “horizontal” (entre homens de uma mesma época) e de colaboração “vertical” (entre homens de épocas diferentes, ou seja, a colaboração com os homens do passado e do futuro).

É que a arquitectura dá-se quase sempre num lugar determinado, em circunstâncias concretas. Trata-se de trabalhar na continuidade de coisas que estão ao lado, por cima, debaixo, encostadas, à frente, atrás, que já estiveram ou que virão, imponderavelmente, a estar.

 

As primeiras imagens que vou mostrar referem-se ao projecto para a União Eléctrica Portuguesa, de 1954, na Rua Alexandre Herculano, no Porto. (1)

Tratava-se de continuar uma frente de rua. No lote contíguo está um edifício do século XIX. Januário Godinho pega na pedra desse edifício e projecta dois novos corpos formalmente muito diferentes, fazendo com que o edifício que já lá existia e o novo edifício de escritórios passem a constituir um conjunto. (2)

Usando as palavras do arquitecto, não é possível, a partir daqui, considerar qualquer dos elementos desta nova entidade separadamente ou independentemente. Este elemento estreito, no meio, pertence a qual edifício? Os seus limites laterais pertencem-lhe a ele ou aos edifícios diferentes que o entalam? Onde começa e acaba aquele friso? Em que tempo foi este elemento estreito projectado e construído? Reparemos na relação entre os detalhes minuciosos das cantarias e das balaustradas e a escala dos vazios envidraçados.

 

Ao mesmo tempo, de outro ponto de vista, descendo a rua, temos um objecto quase cúbico, abstracto, evidentemente do seu tempo. (3) Os materiais são industriais: a pastilha, o tijolo de vidro, os portões de aço, as janelas pivotantes em alumínio anodizado. A estrutura no piso térreo é aparente (mas duplicada) e a organização espacial interior reflecte-se na empena. A laje em consola sobrevoa a massa construída. Mas aquela rectícula: trata-se de granito ou de betão? Pré-fabricação ou artesanato? (4)

Esta imagem é do Tribunal de Tomar, obra de 1955. (5) Um dos seis palácios de justiça que Januário Godinho projectou e que teimava em chamar casas da justiça, segundo me contou Duarte Cabral de Mello, a quem devo, há muitos anos, entre muitas outras coisas, ter conhecido a obra deste arquitecto.

A arquitecta brasileira Lina Bo Bardi fala desta condição de continuidade da arquitectura, neste caso da colaboração “vertical” entre homens de tempos diferentes, como de um “maravilhoso emaranhado” entre o passado, o presente e o futuro, onde, segundo ela, “a qualquer instante, podem ser escolhidos pontos e inventadas soluções, sem começo nem fim.”

Há poucos arquitectos em que este emaranhado esteja tão radicalmente presente nas suas obras. (6) Na arquitectura de Januário Godinho, sentimos que toda a história da arquitectura está presente, mas se conseguimos decifrar de onde chegam alguns dos elementos que cita ou reinventa – com os quais brinca – e se se distinguem quase sempre os elementos de uma estrutura moderna em betão – os pilotis, as vigas, as lajes – somos incapazes de descrever ou situar o resultado absolutamente uno – e novo – da maneira como jogam uns com os outros. (7)

Siza Vieira, numa conferência recente em Espanha contava que há alguns anos, quando lhe foi encomendado o projecto de reabilitação da Casa de Chá da Boa Nova, a primeira vontade que teve foi a de acabar com o que ele chamou de “pingos de madeira” por não lhe parecerem – e estou a citar – elementos essenciais. Entretanto, no dia seguinte, percebeu que se acabasse com esses elementos, um certo lambril deixaria de fazer sentido. Pouco depois, percebeu que, sem esse lambril, teria que acabar com um certo envidraçado, e por aí fora. Em poucos dias concluiu que se eliminasse os tais “pingos de madeira” teria que acabar por demolir a obra e fazer uma outra totalmente diferente, de raíz.

Em muitas das referências sobre a arquitectura de Januário Godinho que salpicam as histórias da arquitectura moderna em Portugal, artigos em revistas, trabalhos de investigação, etc., é habitual ser-lhe apontado um “excesso de decoração”, ou dito de outro modo, um excesso de elementos que não seriam essenciais.

Mas o que acontece nestas obras é que todo o trabalho, muitas vezes denso, sobre a forma, a matéria, a textura e a côr dos elementos e as superfícies que constituem estes espaços, sobre as aberturas e a maneira como a luz entra neles, fazem parte de um todo uno e indivisível que parece nascer tanto desta noção de continuidade – de colaborações “horizontais” e “verticais” – como da necessidade de dar um sentido – significados e sentimentos – ao uso desta arquitectura pelos cidadãos, seus utentes.

Mais presentes do que nunca parecem ser hoje as palavras certeiras e violentas que Vitor Figueiredo (que em jovem trabalhou com Januário Godinho) repetia muitas vezes, como um lema, e que esta arquitectura nos faz sempre lembrar:

 

“Tirem-me tudo menos o supérfluo!”

 

Para terminar, gostava de mostrar duas ou três imagens do Mercado de Amarante. (8) Trata-se sobretudo de uma grande peça a pairar sobre a plataforma de cota mais baixa modelada sobre a encosta pela qual se chega a Amarante, por entre o arvoredo, à beira rio.

 

Aqui, o projecto é feito a partir de um número mínimo de elementos muito simples: (9) o chão modelado em níveis diferentes; paredes soltas em grelha que jogam com as ramagens das árvores e a vista filtrada do rio; pilotis pintados de cor forte, em baixo, que se transfiguram em cima para se unir à mezanine e deixar correr o tecto texturado e prismático, pintado como um toldo de praia, tal como no mercado de Ovar.

Exteriormente (10), o edifício é visto quase sempre de cima e é uma das lições mais espantosas sobre o que nós, arquitectos, costumamos chamar de quinto alçado: a cobertura (11).

Na história, contam-se pelos dedos os arquitectos que não se identificam com um “estilo” ou, quando muito, com alguns “estilos” que se foram sucedendo ao longo da sua obra. Quando digo “estilo” refiro-me à “feição especial típica de um artista” – definição do dicionário – ou, como explica Herberto Helder, a “um modo subtil de transferir a confusão e violência da vida para o plano mental de uma unidade de significação [...] não aguentamos a desordem estuporada da vida. E então pegamos nela, reduzimo-la a dois ou três tópicos que se equacionam.” Continua:  “O mundo é assim, que quer? É forçoso encontrar um estilo. Seria bom colocar grandes cartazes nas ruas, fazer avisos na televisão e nos cinemas. ‘Procure o seu estilo, se não quer dar em pantanas’.” Para perguntar finalmente: “Mas, escute cá, a loucura, a tenebrosa e maravilhosa loucura... Enfim, não seria isso mais nobre, digamos, mais conforme a nossa humanidade?”

 

No caso de Januário Godinho, cada uma das suas obras é uma surpresa. Para quem ainda não as conheça, basta pensar nas imagens que vimos aqui hoje.

E talvez seja essa a razão profunda para que nenhuma obra de Januário Godinho cause qualquer estranheza a quem por ela passa, como me fez notar o meu amigo Rui Sousa Pinto, em conversa há alguns dias. É que estas obras estão absolutamente enraizadas no seu lugar e na sua circunstância.

Talvez esta ausência de um “estilo” reconhecível, esta recusa de uma redução a “dois ou três tópicos que se equacionam”, signifique afinal uma disponibilidade infinita para responder a esses lugares e a essas circunstâncias, num tempo determinado, e corresponde certamente a uma consciência da possibilidade de “reacção química” que o trabalho de arquitectura poderá provocar numa “substância” muito maior do que os seus próprios limites.

Talvez seja a mais radical lição para não nos esquecermos hoje de que este ofício da arquitectura, enquanto um ofício de homens que estão no meio de outros homens – os vivos mas também os mortos e os ainda por nascer – continua a passar sobretudo pelo trabalho de saber como lidar com circunstâncias sempre diferentes. E lidar, para continuar, não significa segui-las ou obedecer-lhes, mas sim pensá-las em cada momento e se necessário a elas resistir ou combatê-las.

José Neves

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